Uma análise da construção da melhor equipe que já vestiu o uniforme do Real Madrid
Ao longo de quase 120 anos, 13 títulos de Champions e 34 títulos nacionais, o Real Madrid teve equipes com os mais diversos estilos, níveis de atuação, perfis de jogadores e glórias conquistadas. Desde os Galáticos de Vicente del Bosque até o envolvente time tricampeão com Zidane, passando pela “Quinta del Buitre”, time multicampeão liderado pelo canterano Butragueño ou pelo time recordista de Mourinho.
Trataremos aqui, porém, do melhor time que já vestiu o uniforme branco. Um time de décadas atrás, quando a realidade do futebol espanhol e europeu era outra e o Real Madrid estava começando a construir sua glória e sua grife. Assim, não tinha, nem de longe, o tamanho que tem hoje.
A conquista da Copa do Rei de 1946 marcou o fim de um jejum de 13 anos sem títulos, e o Real Madrid tinha menos troféus de LaLiga que o Barcelona, Atlético de Madrid e Athletic Bilbao. Uma nova competição, a Copa dos Campeões da Europa, se tornaria o xodó do Madrid. Uma competição que reunia todos os campeões nacionais da Europa para um torneio de mata-mata não demorou para cair nas graças do futebol europeu e ser considerada o grande troféu do velho continente.
O Real Madrid, já reconstruído e liderado por Di Stéfano, conquistou todas as 5 primeiras edições de Copas da Europa.
Desses 5 times, o texto será destinado a apenas um deles: o último. O melhor de todos, não só dessas 5 equipes da década de 50, mas de todos os elencos que passaram pelo Real Madrid. Não foi o mais vencedor em número de títulos conquistados, mas foi o mais revolucionário, o que mais era superior a seus contemporâneos e, em suma, o time que fez do Real Madrid o clube que é hoje.
Real Madrid de Di Stéfano (1959/1960): O Revolucionário
O Real Madrid da temporada 1959/1960 não é o melhor apenas entre os times campeões da década de 50. Mesmo que não tenha sido a equipe que mais levantou títulos, foi indiscutivelmente o melhor time madridista dentro de campo. Um time ofensivo, inovador, revolucionário e muito superior a todos os outros times que enfrentara.
Aquele time perderia LaLiga para o Barcelona no saldo de gols e seria derrotado por 3 a 1 pelo Atlético de Madrid na final da Copa do Generalíssimo. Mesmo assim, o Real Madrid foi melhor ataque em ambas as competições e um detalhe poderia ter mudado qualquer um desses resultados. O clube merengue encerraria a temporada com 4 clássicos contra o Barcelona disputados e três vencidos, com um placar agregado de 9 a 5 para os madridistas.
No entanto, a coroação daquela temporada viria um mês após o fim de LaLiga e um mês antes da final da Copa do Generalíssimo. No dia 18 de maio de 1960. A final da Copa dos Campeões da Europa, sediada em Glasgow (curiosamente, na mesma cidade onde o Real Madrid conquistaria sua nona Champions League, 42 anos depois), foi uma exibição de gala daquele time. Os merengues golearam o Eintracht Frankfurt por 7 a 3 na frente de 127 mil torcedores presentes no Hampden Park.
As duas estrelas do time, Di Stéfano e Puskás, comandaram o ataque e marcaram todos os gols do jogo. O húngaro balançou as redes 4 vezes, enquanto o argentino completou o placar com mais 3 gols. O espanhol Gento e o brasileiro Canário deram uma assistência cada um, e o atacante Del Sol deu mais duas assistências.
Início da temporada, cenário e escolha de técnico
O final da década de 50 marcou a decadência do 3-2-5, muito utilizado nos anos 40, e a ascensão do 4-2-4 usado pelo Brasil na Copa do Mundo de 1958. No entanto, essa formação (também conhecida como 3-4-3 ou W-M) continuava sendo a mais utilizada na Europa. O Real Madrid, por sua vez, apostava em uma versão própria desse esquema.
Luis Carniglia, treinador do Real Madrid nas duas temporadas anteriores, foi demitido após perder LaLiga para o Barcelona. O técnico argentino foi muito importante para Puskás, nova contratação do Real Madrid, voltar à forma. Além disso, conquistou uma vez o Campeonato Espanhol e duas vezes a Copa da Europa nos dois anos que passou na Espanha. Mesmo assim, Carniglia teve seu contrato encerrado e Santiago Bernabéu, presidente do clube merengue, passou a procurar um substituto.
O escolhido para suceder Carniglia foi o paraguaio Manuel Agustín Fleitas Solich. Já com 59 anos, Fleitas Solich treinava o Flamengo quando recebeu o contato do Real Madrid e não hesitou em aceitar a proposta. Pelo clube da gávea, o paraguaio já tinha conquistado 3 vezes o Campeonato Carioca e uma vez o Torneio Rio-São Paulo. Sua importância no desenvolvimento do 4-2-4 no Brasil, grande desempenho pelo Flamengo e, além disso, sua conquista da Copa América de 1953 pelo Paraguai quase o levaram ao comando da Seleção Brasileira ao invés de Vicente Feola, na Copa de 1958.
O currículo de Fleitas Solich não brilhou os olhos apenas da CBD, mas também do presidente madridista Santiago Bernabéu. Após rápidas negociações, o treinador assumiu o Real Madrid no dia 1º de julho de 1959. Miguel Muñoz, treinador interino, passou a comandar a equipe B do time espanhol e, em seguida, Fleitas Solich iniciou os treinamentos.
Trabalho de Fleitas Solich e sua revolução tática
Fleitas Solich chegou a Madri com a missão de implementar seu 4-2-4 no elenco merengue. Por isso, o paraguaio pediu duas contratações vindas do Brasil. A primeira, e mais badalada, foi do meio-campista Didi, campeão do mundo em 1958, que vinha do Botafogo. A segunda foi o ponta-direita Canário, que chegava do América-RJ e tinha a missão de substituir Raymond Kopa. O ponta francês foi uma peça fundamental do Real Madrid nos últimos anos e tinha retornado ao Reîms na última janela de transferências.
O elenco do Real Madrid teve dificuldades de se encaixar em um 4-2-4 e, por isso, Fleitas Solich resolveu retornar ao 3-2-5, mas com algumas alterações. A primeira delas foi uma maneira de não se desvencilhar totalmente do tradicional 4-2-4 do treinador paraguaio. O Real Madrid, em alguns momentos do jogo, trazia um dos volantes para participar da linha de defesa e, assim, conseguir mais solidez no momento sem bola. Para compensar a ausência no meio de campo, Di Stéfano se juntava ao outro volante e, desse modo, o Real Madrid conseguia se alinhar em um 4-2-4. O funcionamento daquele time se assemelhava à Hungria de Puskás do começo da década.
O jogo começava no goleiro Domínguez, que tentava uma saída de bola curta com os zagueiros Marquitos, Santamaría e Miche. Santamaría, o melhor zagueiro do Real Madrid, era o principal responsável por essa saída de bola e, normalmente, passava para Di Stéfano. O argentino, então, procurava acelerar o jogo a partir dali. Os dois pontas recuavam para auxiliar o jogo no meio de campo e frequentemente recebiam bolas em velocidade.
Funcionamento do ataque
O Real Madrid era confortável mantendo a posse e circulava rapidamente a bola pelo meio campo. O time atuava com dois volantes: Zárraga e Vidal, mas o brasileiro Didi e o espanhol Ruiz também foram figuras carimbadas no time. Di Stéfano se juntava a essas duas figuras no meio de campo e contava com os avanços de Santamaría e recuos de Puskás para armar o time. Desse modo, o Real Madrid tinha uma grande superioridade numérica nas faixas centrais do campo. Assim, o futebol do time de Fleitas Solich era veloz e objetivo, chegando rapidamente ao ataque.
No terço final de campo, os jogadores eram livres. Os pontas, Gento e Herrera, ficavam bem abertos e atacavam as costas da defesa. Por dentro, Puskás circulava saindo da esquerda e o espanhol Pepillo invadia a área. Os três zagueiros do Madrid ficavam a menos de 20 metros da área adversária, os volantes davam suporte aos atacantes e Di Stéfano ocupava todo o campo de ataque.
O Real Madrid procurava distribuir suas peças pelo centro do campo e, assim, criar uma superioridade numérica para trocar passes rápidos e precisos. Os pontas tinham o papel de “desafogo”: eram figuras rápidas, alvos de bolas longas e inversões de jogadas, e sua principal arma era o cruzamento da linha de fundo. Os zagueiros de lado, Marquitos (curiosamente, Marquitos é avô do lateral esquerdo do Chelsea: Marcos Alonso) e Miche, quando o Madrid tinha a bola, se posicionavam nas laterais para dar sustentação defensiva ao jogo dos pontas.
A superioridade numérica na faixa central do campo era importante também defensivamente. Por ter muitos jogadores próximos no ataque, o Real Madrid conseguia executar uma pressão pós-perda efetiva e, sempre que alguém perdia a bola, os jogadores em volta atacavam o portador da bola e recuperavam a posse rapidamente.
O futebol total de Di Stéfano e desempenho dos outros atacantes
O argentino naturalizado espanhol praticava o que seria conhecido mais tarde como “futebol total”. A revolução tática daquele time era sustentada por Di Stéfano, pois ele participava de todas as fases do jogo. Sem a bola, ele assim se juntava aos volantes e chegava até a fazer parte da zaga para defender. Além disso, Di Stéfano participava da saída de bola, atrás dos volantes, recebendo a bola dos zagueiros. Nas fases iniciais das jogadas, ele se aproximava de onde a bola estava para formar triangulações. No ataque, Di Stéfano flutuava pelo campo e, dessa forma, armava o time, além de também chegar para finalizar. O argentino ditava o ritmo veloz do time e participava de tudo.
Ferenc Puskás explodiu para o mundo no começo da década de 50, mas não demorou a se adaptar ao futebol espanhol anos depois do auge da Seleção da Hungria. Ele estreou pelo Real Madrid na temporada 58/59, mas foi exatamente em 59/60 que ele se firmou como um dos grandes atacantes da história do Madrid. Artilheiro do time na temporada, Puskás marcou incríveis 47 gols em 36 jogos, uma média de 1,30 gol por partida. O major galopante encerraria sua passagem na capital espanhola com 242 gols em 262 jogos.
Di Stéfano, o maestro do time, foi o vice artilheiro. Após a chegada de Puskás, Di Stéfano se sentia confortável saindo mais da área e circulando o campo inteiro, praticando seu “futebol total”. O argentino terminou a temporada com 25 gols em 34 jogos. Pepillo era o jogador com mais presença de área e marcou 22 gols em 18 jogos, a segunda melhor média de gols/jogo do time. Gento disputou 38 jogos e marcou 19 gols, enquanto seu companheiro Herrera balançou a rede 13 vezes em 39 partidas.
Troca de treinador inusitada
O trabalho de Fleitas Solich manteve o Real Madrid na liderança de LaLiga da 13ª até a 25ª rodada, quando o time da capital enfrentou o rival Barcelona, segundo colocado. A equipe catalã, 3 pontos atrás do líder, recebeu os merengues no Camp Nou no dia 20 de março de 1960. A partida acabou com a vitória do Barcelona por 3 a 1. O resultado dava a liderança para os blaugranas, que tinham o mesmo número de pontos que o Real Madrid, mas um saldo de gols maior.
Menos de um mês depois, Fleitas Solich pediu demissão por ter perdido o título nacional, mesmo após vencer a Real Sociedad por 4 a 0. Três meses depois, ele retornou ao Flamengo. O paraguaio comandou o Real Madrid em 33 jogos, onde o time marcou 109 gols, sofreu 41, e teve um aproveitamento de 75,76%.
O Real Madrid, sem tempo de substituir Fleitas Solich após o surpreendente pedido de demissão, resolveu alçar Miguel Muñoz de volta ao elenco principal. Ex-meio campista do próprio Real Madrid, Muñoz se aposentou em 1958 e foi o treinador interino dos madridistas no início da temporada, antes da contratação de Fleitas Solich. Durante a temporada, Muñoz treinou o time B do Real Madrid e foi o escolhido para comandar a equipe principal pelo restante da temporada: a última rodada de LaLiga, as semifinais e final da Copa da Europa e todas as rodadas da Copa do Generalíssimo.
Muñoz promoveu algumas mudanças, mas deu continuidade à tática do time de Fleitas Solich. O espanhol trocou Miche por Pachín no lado esquerdo da defesa e tirou Herrera da ponta-direita para a entrada do brasileiro Canário, dando mais solidez defensiva ao time. Além disso, substituiu Pepillo pelo recém-contratado Luis Del Sol, que vinha do Betis, dando mais fluidez ao ataque.
Reta final da temporada e final contra o Frankfurt
Oito dias depois de sua contratação, Muñoz comandou o Real Madrid em uma vitória avassaladora em casa sobre o Barcelona pela semifinal da Copa da Europa. Os madridistas superaram os blaugranas por 3 a 1, com dois gols de Di Stéfano e um de Puskás. No jogo da volta, uma semana depois, o Real Madrid voltaria a superar o Barcelona por 3 a 1, desta vez no Camp Nou. Com gols de Puskás (2) e Gento, o time merengue carimbou seu passaporte para a final. Além disso, a vitória madridista causou a demissão de Helenio Herrera, treinador do Barcelona.
A final da Copa da Europa só aconteceria mais de um mês depois do último jogo contra o Barcelona, no dia 18 de maio de 1960. Enquanto isso, o Real Madrid passou pela primeira fase Copa do Generalíssimo ao eliminar o Baracaldo FC e venceu o jogo de ida das oitavas por 5 a 0, contra a Cultural Leonesa. Desse modo, o Real Madrid chegava à final da Copa da Europa em grande fase.
A final entre Real Madrid e Eintracht Frankfurt foi um verdadeiro massacre: o Real Madrid marcou 7 gols em 70 minutos e sacramentou seu domínio europeu. O Eintracht Frankfurt sofreu com a inferioridade numérica no meio de campo, pois o Real Madrid continuava agrupando jogadores na faixa central. Santamaría avançava para se aproximar de Zárraga e Vidal, dupla de volantes titular, enquanto Di Stéfano continuava com a postura de se juntar aos meio-campistas. Puskás também recuava e Del Sol circulava à frente dos meias, deixando o Real Madrid com 6 jogadores na faixa central do campo.
O triunfo tático do Real Madrid
Essa superioridade numérica fez com que o Real Madrid ganhasse o meio de campo e circulasse rapidamente a bola por ali. Defensivamente, o Eintracht Frankfurt tentava marcar o time merengue individualmente, mas as constantes movimentações e trocas de posição dos jogadores de ataque confundiam os marcadores. No segundo tempo, os defensores do time alemão desistiram de marcar Di Stéfano, pois viram que ele não atuava como atacante.
No terço final, o Real Madrid repetiu a tática de Fleitas Solich: os zagueiros avançavam até ficar cerca de 20 metros de distância da área adversária e os volantes avançavam para ajudar os atacantes. Gento e Canário atacavam as pontas com muita velocidade, enquanto Puskás, Del Sol e Di Stéfano circulavam livremente por dentro. Defensivamente, o Real Madrid aproveitava o agrupamento dos jogadores no meio para sufocar a saída de bola do Eintracht Frankfurt que, por isso, teve como única tática ofensiva a ligação direta do goleiro para os atacantes. Em adição, o brasileiro Canário atuava mais como um ala que como um ponta e dava mais sustentação defensiva para o time.
Legado e considerações finais
Com a bola, o Real Madrid de 1959/1960 era um time efetivo e rápido. Tanto com Fleitas Solich quanto com Miguel Muñoz, a equipe madridista mantinha a posse de bola, mas não perdia tempo no ataque. Ambos os treinadores priorizavam ataques rápidos e objetivos, usando a movimentação e velocidade de seus atacantes para desmontar as defesas e atacá-las rapidamente. O Real Madrid circulava a bola pelo meio campo para atrair a marcação adversária, então atacava as costas da defesa veloz e letalmente.
Sem a bola, o Real Madrid esboçava uma variação para o 4-2-4, formação que dominaria o mundo na década seguinte. Além disso, o time usava sua superioridade numérica para promover uma marcação alta. A noção de recuperar a bola rapidamente e aproveitar a desorganização do adversário, que seria popularizada pela Holanda de 74, já estava presente no elenco do Madrid.
O Real Madrid de 59/60 era uma equipe que gostava da bola, mas era objetiva com ela. Tinha mecanismos para recuperar a bola no campo de ataque, mas também sabia se estruturar para bloquear ataques. Em 46 jogos, o Real Madrid marcou 158 gols e foi o melhor ataque em todas as competições disputadas. Aquele time não construiu apenas o tamanho que o Madrid tem hoje, mas também o DNA do clube, ditando como todos os times que vestirem blanco devem jogar.
Ao fim da temporada, estava claro quem era o dono do continente. Aquele Real Madrid definiu como se deveria jogar para ganhar a Copa da Europa e influenciou diversos times e mentes da Europa. Foi inspiração para Rinus Michels conceber a Holanda de 74, para o Benfica de Béla Guttmann e para um jovem Alex Ferguson que, aos 18 anos, saiu de Glasgow após a final da Copa da Europa encantado pelo futebol madridista.